Com base na investigação levada a cabo a propósito da sua tese doutoral (Pedro Álvares Seco: a Retroprojecção da Memória da Ordem de Cristo no Século XVI, FLUP, 2018), Joana Lencart veio a apresentar, em 2022, uma interessante monografia denominada A Ordem do Templo e a Ordem de Cristo na Obra de Pedro Álvares Seco no Século XVI (Sintra, Zéfiro, 2022).
Apesar das suas aportações sobre a história das Ordens do Templo e de Cristo até meados do século XVI, o seu labor centra-se, acima de tudo, na compreensão e análise da vida e obra de Pedro Álvares Seco, situando-o no coração de um momento histórico caracterizado pela afirmação da autoridade régia portuguesa sobre todas as ordens militares. Estas circunstâncias acabariam por transformar a Ordem do Templo num elemento secundário da obra, relegando-a para uma breve resenha dos dados presentes em Templários em Portugal, Homens de Religião e de Guerra, de Paula Pinto Costa (Porto, Manuscrito Editora, 2019). Encontramos também, quase nas mesmas circunstâncias, as duas primeiras fases de constituição e construção da Ordem de Cristo, ou seja, o período entre 1319 e 1420 (da fundação da ordem à nomeação do Infante D. Henrique como seu administrador) e de 1420 a 1529 (desde os tempos do Infante até à reforma de Frei António de Lisboa).
A partir deste momento, mergulhamos numa intrincada filigrana que funde a história da ordem com o esforço de construção de uma memória “retroprojectada” da sua realidade institucional e territorial, transformando Pedro Álvares Seco no principal agente de uma visão “régia” desta realidade. Não é por isso de estranhar que o apartado dedicado ao período que mediou a reforma de Frei António de Lisboa e a morte do cronista (1529-1581) sirva melhor de preâmbulo ao denso estudo da vida e obra de Pedro Álvares, no sentido em que explicita todo o intervencionismo régio de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique, e a forma em como o rigor na aplicação de reformas administrativas resultaria, na verdade, numa cativação de recursos pela coroa.
Nesse sentido, a autora divide as 15 obras de Pedro Álvares Seco segundo o seu universo temático: âmbito religioso e militar (de onde se destaca o Livro das Escritura, uma espécie de história universal das ordens do Templo e de Cristo, através da cópia e glosa de mais de 1200 documentos); âmbito patrimonial e económico (de onde sobressaem títulos como o Tombo da Mesa Mestral ou o Tombo dos Bens do Convento de Tomar, por exemplo); e, por fim, os trabalhos dedicados aos escritos sobre o modus vivendi da ordem (como o Livro da Regra ou as Definições da Ordem de Cristo). Assim, somos encaminhados primeiramente a debruçar-nos nas transformações ocorridas no modus vivendi da ordem, chegando aos tempos de Pedro Álvares, que, fruto de uma adaptação aos compromissos assumidos com a coroa, dava já plenos sinais de transformação numa espiritualidade laica. A própria autora refere que, apesar da sua inspiração cisterciense, as visitações do século XVI dão a entender que já não existia uma observância generalizada dos seus votos ou uma adesão ao rito e preceitos monásticos. De forma a captivar, e, de certa forma, controlar, a nobreza integrada nas ordens militares, a coroa teria que oferecer-lhes uma vida mais próxima do mundo laico, sem que, no entanto, se produzisse uma desconecção integral em relação às suas normas. No que concerne a estas novas fórmulas de vivência monástico-militar, Joana Lencart apresenta 3 exemplos bastante ilustrativos: uma crescente liberalização no usufruto de bens móveis e imóveis pelos freires, que, em muitos aspectos, entraria em contradição com o seu voto de pobreza; o não cumprimento do voto de castidade pelos freires, que, numa primeira fase, levaria a inúmeras cartas de legitimação e, mais tarde, a uma liberalização do casamento para todos aqueles que tomassem somente ordens menores; e, por fim, a ausência dos freires cavaleiros das suas comendas e sua desobediência aos votos monásticos e ausência de compromisso religioso, resultantes numa lista de privilégios que minavam os seus princípios de observância monástica.
É neste mundo em mutação que Pedro Álvares viria a viver, usando a edição de documentos, e suas respectivas glosas, como um mecanismo de descrição destas lentas transformações – sempre de uma forma favorável à coroa. Vejamos que o cronista passou pela transposição para a coroa do padroado de todas as igrejas ultramarinas (1514) e pela absorção do padroado das igrejas fundadas pelas ordens militares (1516), pela nomeação de D. João III como administrador perpétuo das 3 ordens (1551), pela atribuição do privilégio papal ao rei de celebrar capítulo em qualquer lugar (1559), de visitação sobre qualquer um dos membros das 3 ordens (1561) e de legislar a favor das 3 ordens, como administrador das mesmas (1570).
Contudo, vivia-se, ao mesmo tempo, um impulso de retorno às raízes, visível na reforma dos estatutos da ordem de Frei António de Lisboa, talvez com a intenção de inverter o sentido de liberalização de costumes vivida entre os freires do século XVI e, assim, de os tornar mais “dóceis” e dependentes do poder régio.
De um ponto de vista de memória descritiva, a autora divide a obra deste cronista em duas categorias claras: uma memória económico-patrimonial, que visava apenas a preservação de uma rede plurissecular de património e privilégios fiscais; e uma memória histórico-institucional, mais centrada na história e evolução da orgânica interna da ordem. Dentro da memória económico-patrimonial, Joana Lencart inclui as seguintes obras: o Tombo dos bens, rendas e direitos que a Mesa Mestral da Ordem de Cristo tem nas vilas de Tomar e Pias e seus termos; o Tombo dos bens, rendas, direitos e escrituras do Convento de Tomar; o Tombo de Santa Maria dos Olivais; o Tombo dos bens e propriedades das capelas e aniversários que se cantavam no Convento de Tomar; o Tombo dos bens da Gafaria da Misericórdia de Tomar; e o Livro das escrituras do Hospital de Santa Maria da Graça de Tomar. Dentro da memória histórico-institucional inclui: o Livro das escrituras da Ordem de Cristo; o Livro das Comendas da Ordem de Cristo; o Livro das igrejas, padroados e direitos eclesiásticos da Ordem de Cristo; e o Livro da regra e definições da Ordem de Cristo, com privilégios, indulgências e graças atribuídos pelos pontífices e reis.
Todo este trabalho, assente num diligente processo de recolha e transcrição documental, seria dividido em 4 ciclos de escrita, bastantes ilustrativos das mudanças internas ocorridas na Ordem: coincidente com a reforma de Frei António de Lisboa (c. 1530), Pedro Álvares Seco foi encarregue, nesta primeira fase, de fazer um inventário dos bens e privilégios da Ordem de Cristo, colocando-o em contacto, pela primeira vez, com um vasto número de documentos e de testemunhos orais; por volta de 1542, receberia a maioria dos alvarás régios necessários à redacção dos seus tombos de dimensão económica e patrimonial (Tombo dos bens, rendas, direitos e escrituras do convento de Tomar; Tombo dos bens, rendas, direitos e escrituras do convento de Tomar; Tombo dos bens, rendas e direitos que a Mesa Mestral da Ordem de Cristo tem nas vilas de Tomar e Pias e seus termos; Tombo da igreja de Santa Maria dos Olivais; Tombo dos bens e propriedades das capelas e aniversários que se cantavam no convento de Tomar; Tombo dos bens da Gafaria da Misericórdia de Tomar; e Livro das escrituras do Hospital de Santa Maria da Graça de Tomar); por volta de 1559-1560, daria início a uma nova fase dedicada à reescrita da história da Ordem de Crista, à luz dos ditames dos processos de centralização régia (1559-1573 – Livro das escrituras da Ordem de Cristo; 1560-1563 – Livro das Comendas da Ordem de Cristo; Compêndio das Comendas da Ordem de Cristo, iniciado em 1560; 1559-1560 – Livro de bulas e letras apostólicas concedidas à ordem de Cristo; e o Livro das escrituras da Ordem de Cristo); por fim, dedicou a década de 1570 à finalização de algumas das suas obras anteriores e à redacção de compêndios normativos, talvez com o intuito de promover um regresso às normas monásticas da ordem (Summa do que contem no livro das igrejas; Livro das igrejas, padroados e direitos eclesiásticos da Ordem de Cristo; Livro dos sumários das escrituras da Ordem de Cristo; e o Livro da regra e definições da Ordem de Cristo, com privilégios, indulgências e graças atribuídos pelos pontífices e reis).
Analisando a tipologia de escrituras copiadas pelo cronista, Joana Lencart define, em traços gerais, o seu processo de escrita e chega a um vasto leque de conclusões. Em primeiro lugar, Pedro Álvares levou a cabo a selecção de 1942 escrituras do Templo e de Cristo, sendo que algumas delas seriam copiadas e glosadas em distintas obras. Seu objectivo principal seria enaltecer a Ordem de Cristo, herdeira do Templo, e, através dela a monarquia, nem que para isso tivesse de copiar e analisar alguns documentos falsos. Foram ocultadas, ou, pelo menos, desvalorizadas, todas as sentenças desfavoráveis à ordem, bem como os seus conflitos internos – como aqueles despoletados no período de Frei António de Lisboa. Cada um dos seus cartulários foi organizado de uma forma lógica e obedecendo a uma ordem temática, facilitando o acesso à informação. Desta forma, justifica a propriedade e privilégios da ordem, colocando-os no seu devido contexto histórico. Daí ter lavado a cabo uma fase de recolha, uma segunda de cópia e tratamento documental e uma terceira de adaptação da história da ordem às reformas régias do século XVI. Entre as décadas de 1560 e 1570, a interferência da mundividência régia torna-se evidente nos textos copiados e nas suas interpretações, sinal de que, por esta altura, a coroa já assumira um domínio total sobre as ordens.
Realce-se ainda que, para além destas interpretações, a autora debruça-se ainda sobre os processos de ocultação de informação na obra de Pedro Álvares, bem como sobre a sua paulatina dispersão por arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiras. Para além disso, inclui um útil anexo documental e de tabelas prosopográficas.
Em suma, Joana Lencart oferece-nos um excelente trabalho, ilustrativo da obra de Pedro Álvares Seco e, acima de tudo, essencial para a compreensão dos mecanismos de construção da memória das ordens monástico-militares no século XVI.